DNA não trará revolução médica, diz livro.

"Promessas do Genoma", de Marcelo Leite, rejeita determinismo genético.
Para ele, estudos do genoma não revelarão o segredo dos seres vivos.
SALVADOR NOGUEIRA  

"O livro da vida", "o que nos faz humanos" etc. etc. etc. Todo mundo já ouviu ou leu em algum lugar essas doces palavras para descrever o genoma humano. Mas, para o jornalista Marcelo Leite, a melhor definição está mais para "sopa de letrinhas". Em seu livro "Promessas do Genoma", recentemente lançado pela Editora Unesp, ele detona toda a retórica, cheia de metáforas, que fez (e faz) tanta gente pensar que na soletração de todas as bases químicas que compõem o DNA humano estão os segredos da vida e da cura de todos os males.

A obra, baseada na tese de doutorado do autor em ciências sociais, é marcada pelo senso crítico aguçado e pela prosa envolvente que já são velhos conhecidos do público pela coluna semanal que ele assina no jornal "Folha de S.Paulo". Mas não que o livro se resuma a isso. Em "Promessas do Genoma", o jornalista aposta na ousadia e não se limita a criticar. Após apresentar todas as nuances do problema gerado pelo "endeusamento" da genômica -- biologia travestida de "big science" --, ele sugere soluções de como abordar o assunto de forma mais salutar.

Leite fala, ao mesmo tempo, a quatro públicos distintos (cientistas sociais, jornalistas, biólogos e interessados no tema) e consegue entregar conteúdo atraente (nem sempre simultaneamente) para todos os grupos. Em essência, é um livro provocador, no melhor sentido da expressão: faz o leitor pensar.

Em sua apresentação, a obra não poupa nenhum dos envolvidos na criação desse mito prometéico dos segredos do DNA. Jornalistas, pesquisadores, cientistas divulgadores, todos são, em alguma medida, culpados dessa suposta manipulação conceitual para vender uma série de progressos que, a despeito do sucesso retórico na obtenção de verbas para pesquisa, ainda estão longe de se tornar realidade nos hospitais.

Ao se enfronhar corajosamente no mundo das ciências da vida e voltar vivo para contar a história, Leite retorna munido de argumentos sólidos para dinamitar os preceitos derivados do velho "dogma central da biologia", segundo o qual existe um direcionamento claro e hierárquico na arquitetura dos seres vivos. Após a leitura, fica claro que não é mais possível sustentar uma unilateralidade organizacional que começa pelo DNA, repositório dos dados genéticos, passa pelo RNA, mensageiro submisso do DNA, e chega às proteínas, construídas segundo o todo-poderoso DNA.

De fato, as pesquisas têm mostrado que a complexidade na formação dos seres vivos refuta essa linearidade simples. O que é uma pena. Seria ótimo se tudo fosse tão descomplicado, pois permitiria intervenções cirúrgicas em escala molecular para solucionar problemas médicos que afligem a humanidade desde sempre.

Entretanto, para Leite, a não-realização dessa profecia não desencorajou os cientistas de defender essas premissas datadas. Com coleções de citações verborrágicas de pesquisadores e rigor estatístico (contando, por exemplo, quantas vezes se usou expressões como "nova era" ou "revolução" em artigos científicos), o autor demonstra como os partidários da biotecnologia nascente construíram um lobby quase indestrutível ao redor do campo da genômica, tornando-o o consumidor voraz de recursos e pessoal que é hoje, a despeito das poucas promessas cumpridas (ou mesmo cumpríveis).

Partindo disso (e concluindo que cientistas não são imparciais, nem tomam decisões com base em dados empíricos, mas de acordo com premissas circulares e auto-reforçadoras), ele chega a uma conclusão audaz: cabe aos cientistas sociais servir de "cães-de-guarda" da biotecnologia. Com a palavra, Marcelo Leite: "A conclusão principal é que cabe ao cientista social que se defronta com a tecnociência em sua vertente biotecnológica empunhar as armas da crítica para desafiar o campo hegemônico da genômica a abandonar ou reformular drasticamente o complexo de metáforas deterministas que até agora lhe deu sustentação."

Ironia: um cientista social defendendo justamente o papel dos cientistas sociais, contrapondo-os aos partidários da biotecnologia, que defendem o papel da biotecnologia. Como não poderia ser diferente, cada um vende o seu peixe -- até aí, problema nenhum. Mas será que alguém tem mais direito que o outro a ser "cão-de-guarda"? Quem vigia o vigia?

Essa pergunta se faz ainda mais presente quando o autor admite uma campanha apriorística de detonação de toda e qualquer forma de determinismo. Uma premissa perigosa, sobretudo para quem vai a seguir contrariar os que supostamente não seguem conclusões compatíveis com dados empíricos confirmados. Se é possível admirar o viés humanista desse pressuposto, é igualmente possível criticá-lo. Não faz parte da prática científica saudável ter uma conclusão irrefutável antes mesmo de colocá-la à prova, e Leite tenta sair à francesa desse paradoxo embutido em seu discurso.

A despeito das contradições (que, de novo, existem tanto no discurso que ele combate quanto no que ele propõe como substituto), é compreensível a posição assumida. É algo como os ambientalistas radicais, que, por mais que sejam indefensáveis por si mesmos, estabelecem um equilíbrio importante contra os consumidores mais vorazes e inconseqüentes dos recursos terrestres. No caso em questão, Leite se coloca como um antideterminista radical, num mundo sobrecarregado de determinismos baratos e indefensáveis -- uma função legítima.

Mas talvez a atitude mais saudável seja pensar de forma menos inflexível, evocando a noção de domínio de aplicabilidade. É fato que, em alguns casos (até agora a minoria absoluta), um gene (um pedaço de DNA) pode ter uma influência muito clara, inevitável e linear no resultado final do desenvolvimento do organismo. Por si só, isso prova que há circunstâncias em que o determinismo mais rasteiro é uma premissa válida.

Não perdendo isso de vista, parece menos desonesto que os cientistas apostem, como hipótese de trabalho, em mecanismos deterministas -- eles não deveriam mesmo se preocupar com o quanto isso pode afetar o orgulho humano, mas simplesmente com a navalha de Occam, que exige a máxima simplicidade possível.

Como criticar, por exemplo, Albert Einstein, por ter usado sua teoria da gravidade para tentar explicar a evolução do Universo? Claramente, a gravidade não era a única força existente, mas ele achou que o "determinismo gravitacional" era um bom caminho para entender o ambiente cosmológico. Hoje, graças a avanços nas observações astronômicas, sabemos até que existe uma força misteriosa (a energia escura) que age às avessas da gravidade e influencia até com mais intensidade a evolução do Universo. Mas não percamos de vista que foi graças à hipótese inicial -- a do determinismo gravitacional -- que chegamos ao atual estado de entendimento.

O mesmo se dá com os estudos do desenvolvimento dos organismos biológicos e sua relação com o determinismo genético. Embora seja verdadeiro apenas para pouquíssimos casos, o determinismo foi uma premissa científica útil até mesmo para diminuir sua própria importância -- é a magia do sistema de auto-correção da ciência (que não é tão bom quanto os cientistas dizem, mas também não é tão ruim quanto os críticos afirmam).

Prova do sucesso desse mecanismo é o fato de que muitos dos dados científicos levantados por Leite para minar o determinismo genético saíram de estudos supostamente enviesados por essa simplificação barata da biologia. Ele até chega a reconhecer que, como hipótese inicial, a abordagem simplificadora pode ter tido seu valor, mas o faz com muita discrição. Aliás, basicamente a mesma discrição que ele acusa em suas vítimas na hora de apresentar dados empíricos refutadores do poder da biotecnologia.

Além de atacar o determinismo genético em geral, Leite também alfineta a noção de determinismo tecnológico e se torna crítico feroz da ciência que se desenvolve em função das ferramentas disponíveis, em vez de os problemas meritórios -- forma menor da prática científica que ele chama de "tecnociência". Sobre isso, basta lembrar que o Homo foi habilis antes de ser sapiens. Devemos nos perguntar se é sábio pender muito para um lado ou para o outro numa avaliação na influência da tecnologia no progresso do saber.

Nesse tema específico, como em todo o resto, Marcelo Leite oferece uma rica obra-síntese, que vem também com o bônus de suas próprias contribuições criativas ao debate. No frigir dos ovos, ainda que não seja a palavra final sobre o assunto (se é que ela existe), "Promessas do Genoma" é um ótimo ponto de partida para uma forma muito mais sofisticada e realista de entendimento do desenvolvimento dos organismos e do papel da informação genética nesse processo.