Em busca das memórias perdidas.


No filme “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”, Joel (Jim Carrey) fica abismado ao descobrir que sua namorada Clementine (Kate Winslet) optou por apagar definitivamente as memórias da tumultuada relação amorosa em que o casal vivia. Num ato de desespero, Joel vai atrás do inventor da técnica para que apague nele também as memórias do relacionamento. Mas no meio do processo ele percebe o quanto ainda ama Clementine e se arrepende da decisão. Joel tenta evitar que as memórias se apaguem realocando-as em diferentes regiões do cérebro, agrupando-as com outras memórias que não necessariamente deveriam estar juntas.

Existe alguma memória que, por pior que tenha sido a experiência (até mesmo em quem você votou nas ultimas eleições), você gostaria de apagar do seu cérebro de uma vez por todas? Antes de responder, vale lembrar que em casos de doenças neurodegenerativas, como Alzheimer ou Parkinson, o indivíduo não tem escolha – as memórias simplesmente vão sumindo. Aliás, esse é um dos primeiros sintomas da neurodegeneração, o paciente não consegue lembrar dos nomes dos familiares, por exemplo.

Imagine agora que você, ou um portador de doença neurodegenerativa, pudesse tomar uma pílula para se lembrar de memórias esquecidas. Você tomaria? Na situação hipotética, o simples fato de existir uma pílula assim implicaria que as memórias não são apagadas definitivamente. O problema estaria em acessá-las. Pois saiba que, com base num recente trabalho de um grupo de pesquisadores do renomado MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), essa pílula pode virar realidade. E o mais impressionante é que o mecanismo de ação pode estar relacionado a alterações epigenéticas no genoma neuronal, como o empacotamento do DNA. Calma, eu explico mais abaixo.

No trabalho, publicado recentemente na “Nature” (Fischer e colaboradores, 2007), o grupo utiliza um modelo em camundongos de neurodegeneração progressiva. Nesses valiosos animais transgênicos, a neurodegeneração em regiões especificas do cérebro pode ser induzida através de fatores adicionados na dieta, em qualquer período da vida do animal.

Dessa forma, pode-se “criar” memórias nos camundongos normais e testá-las após o início do processo neurodegenerativo. Obviamente, os camundongos não vão te contar sobre a vida deles, o que fizeram ontem ou quão chato é ficar numa gaiola. As memórias são formadas em testes comportamentais; por exemplo, associar um estímulo sonoro (um apito característico) a outro estímulo repulsivo (um pequeno choque).

Após aprenderem a associar o apito com o choque, os animais foram testados novamente algumas semanas depois. A maioria deles se lembrou perfeitamente do que acontecia ao ouvirem o apito: lá vem o choque! Nesse caso, eles antecipavam o que estaria por vir e congelavam logo depois de ouvir o apito, como uma criança que apronta uma e aguarda ansiosamente a repreensão materna. No entanto, ao induzir a neurodegeneração, os camundongos esqueciam essa correlação e continuavam caminhando normalmente pela gaiola até serem pegos de surpresa pelo choque.

Ao manter os camundongos com neurodegeneração num ambiente rico (cheio de brinquedos, rodinhas de corrida e interação social) algo surpreendente aconteceu – os animais passaram a relembrar o que tinham aprendido antes da neurodegeneração e congelavam ao ouvir o apito, já esperando pelo choque. Esse resultado demonstra claramente que as memórias não são completamente apagadas pela degeneração nervosa, mas existe uma dificuldade em acessá-las. Seria algo como um CD sujo que fica rodando no tocador: as músicas estão todas lá, só não conseguem mais serem lidas pelo laser.

Análises subseqüentes mostraram que o ambiente rico no qual os animais foram mantidos não bloqueou a neurodegeneração, mas sim aumentou o número de sinapses que os neurônios sobreviventes eram capazes de fazer. Parece que são justamente essas sinapses as responsáveis por encontrar as memórias perdidas, estabelecendo novas redes neurais, num fantástico exemplo de plasticidade cerebral.

Novas sinapses são estimuladas através da leitura de uma série de genes que precisam ser ativados pelos neurônios. Para que os genes sejam devidamente ativados, o DNA precisa ser desempacotado, como um novelo que vai se desenrolando. Somente na forma desempacotada que os genes conseguem ser lidos. O controle de que região do DNA fica acessível, ou “desenrolada”, em um determinado momento é feito por um mecanismo epigenético, isto é, sem alterar o código genético em si, mas sim o envoltório protéico que projete a dupla fita de DNA. Enzimas conhecidas como HDACs são algumas das muitas proteínas responsáveis pelo empacotamento do DNA.

Usando inibidores de HDAC, o grupo do MIT reproduziu o mesmo resultado que obteve com o ambiente rico, ou seja, os camundongos com neurodegeneração conseguiram recuperar memórias perdidas. Como o ambiente rico consegue desempacotar o DNA, levando à ativação gênica, ainda é um mistério. Sabe-se que mecanismos epigenéticos similares atuam em outras condições neurológicas, como no desenvolvimento da epilepsia, no vício em drogas e até mesmo na regulação do sistema visual.

Minha maior crítica a esse tipo de trabalho é que as enzimas HDAC são promíscuas e podem atuar em uma série de outras vias menos conhecidas e não apenas na formação de novas sinapses. Da mesma forma, o ambiente rico também induz células-tronco neurais a produzir novos neurônios no hipocampo (estrutura do cérebro relacionada à memória e ao aprendizado), que também podem contribuir com o restabelecimento das redes neurais. Esse ponto não foi levado em consideração pelo grupo do MIT e pode influenciar na interpretação dos resultados.

Além disso, o grupo nunca utilizou o mesmo grupo de animais em experimentos de recuperação da memória, o que seria o melhor controle possível nos experimentos propostos. Não fica claro o porquê disso no manuscrito, mas parece um deslize dos revisores científicos anônimos, encarregados de avaliar o artigo antes da publicação (pois é, até a “Nature” come bola).

De qualquer forma, o trabalho abre excelentes perspectivas para uma potencial droga que ajude a melhorar a qualidade de vida dos portadores de doenças neurodegenerativas, como Parkinson e Alzheimer, já que há fortes indícios que as memórias não estão perdidas para sempre. Aparentemente, o que o cérebro memoriza, não esquece jamais.   
 
Globo.com - Alysson Muotri - 18/05/07