Chefe do Projeto Genoma defende religião.

Em "A Linguagem de Deus", Francis Collins diz que a fé também é uma escolha racional.
Para biólogo, ordem do Universo e moralidade humana apontam para a divindade.

A famosa frase de Machado de Assis, "unir as duas pontas da vida", é um ótimo jeito de descrever o livro "A Linguagem de Deus", do biólogo e médico americano Francis Collins. Aqui, porém, as duas pontas não são a juventude e a velhice citadas por Machado, mas dois domínios da experiência humana que vivem separados, isso quando não batem cabeça de forma agressiva: a ciência e a religião. O resultado desse esforço, lançado recentemente em edição brasileira, pode não convencer os céticos, mas transpira coragem, decência e lirismo.

O tom do livro, altamente pessoal, reflete a própria luta interior de Collins (chefe do grandioso Projeto Genoma Humano), que passou de ateu a cristão convicto já na idade adulta, ao concluir seu doutorado. Tentando romper a cortina de séculos de preconceito e desconfiança mútuos que freqüentemente separam as pessoas de fé dos cientistas, Collins quer usar a própria trajetória para mostrar que é possível compreender as verdades factuais sobre a origem do Universo e da vida e, ao mesmo tempo, viver uma crença religiosa profunda. 

O que Collins propõem, e aqui está o lado audacioso do livro, não é só uma trégua entre as duas visões de mundo. Ele diz que é possível uni-las num todo harmonioso, cuja validade pode até não ser passível de prova como uma teoria científica, mas que tem uma base fundamentalmente racional.

Examinando os dados

"Racional", de fato, é a palavra a ser usada. Collins revela, para a provável surpresa de muitos desavisados, que descobriu a fé de forma totalmente diferente da maioria das pessoas. Criado numa família não-religiosa (ele e seus irmãos freqüentaram o coral da igreja com recomendações expressas de "aprender música e não prestar muita atenção no que era pregado"), ele descobriu o fascínio da ciência quando era adolescente, tornando-se primeiro agnóstico e depois abertamente ateu.

Porém, ao cursar medicina, Collins se viu mais e mais surpreendido pela fortaleza espiritual das pessoas com uma crença, mesmo diante das piores tragédias. De repente, ele se deu conta de que nunca havia aplicado a mesma abertura de pensamento que tinha aprendido como cientista à questão da fé. Em outras palavras, Collins negou-se a examinar as possíveis contra ou a favor da religião -- coisa que, segundo ele, foi uma atitude indigna de um verdadeiro cientista.

Diante desse dilema, acabaram chegando às mãos de Collins os escritos de C.S. Lewis, romancista norte-irlandês e cristão convertido que fez uma defesa apaixonada da crença em Deus como uma atitude racional. O jovem ateu se sentiu especialmente tocado pelo argumento da "lei moral" proposto por Lewis: a busca pela maneira correta de viver, mesmo que em detrimento do nosso próprio bem-estar, seria algo inexplicável sem levar em conta a ação de Deus no coração humano.

Presente em todas as culturas humanas, esse anseio por uma força moral "fora" de nós é, para Lewis - e, após sua conversão, também para Collins -, o mais próximo que se pode chegar de uma "prova" da existência de Deus. Ele é humilde o suficiente para reconhecer que a razão, sozinha, não é suficiente para confirmar esse tipo de crença, mas diz que ela não é inconsistente com o fato de que o nosso Universo, regido por leis finamente ajustadas e favoráveis à vida, poderia ser considerado a obra-prima de uma mente divina.  

 Em defesa de Darwin

Collins, porém, não vê a fé em Deus como uma desculpa para o fundamentalismo. É por isso que ele se dispõe a uma defesa corajosa das descobertas que a biologia moderna, em especial a biologia molecular, sua especialidade, fizeram a respeito do longo processo de evolução que deu origem ao homem. 

Para o pesquisador, o fato de que biologicamente somos aparentados a todas as outras formas de vida na Terra, compartilhando muito de nosso DNA com os chimpanzés e até com as humildes moscas-das-frutas, é prova cabal de que a teoria da evolução do naturalista Charles Darwin ainda vale. Por isso, Collins rejeita tanto o criacionismo - a idéia de que o mundo e as espécies vivas foram criados em seis dias, como diz o relato bíblico do Gênese - quanto o chamado design inteligente. Essa corrente de pensamento, popular entre cristãos e alguns cientistas renegados americanos, propõe que algumas estruturas dos seres vivos são tão complexas que jamais poderiam surgir por meio da evolução gradual - teriam sido projetadas diretamente por um ser inteligente.

Como bem aponta Collins, o design inteligente é má ciência e má teologia. É má ciência por argumentar a partir da ignorância: só porque hoje não há uma explicação consolidada sobre, por exemplo, o surgimento dos flagelos ("caudas" natatórias) das bactérias, isso não significa que a ciência não achará essa explicação. E é má teologia por imaginar que Deus - o "ser inteligente" por trás dos argumentos do design inteligente - seria um artesão descuidado, que precisa o tempo todo corrigir sua criação "no braço" para que ela funcione.

A alternativa de Collins - o BioLogos, junção de biologia e "Logos", o Verbo divino que, segundo a tradição cristã, teria criado o mundo - traz a idéia de que Deus teria estabelecido as regras do Universo desde seu princípio, de maneira que, na plenitude do tempo, pudessem evoluir seres que fossem capazes de encontrar a "lei moral" e buscar um relacionamento com o próprio Criador.

Essa visão pode ou não parecer coerente, e talvez seu apelo esteja limitado àqueles que já possuem uma criança. Mas é impossível ignorar a generosidade de Collins, em seu pedido para que duas facetas tão importantes da vida humana, a fé e a ciência, deixem de se considerar mutuamente excludentes.