Problema vital.
A questão de quando a vida tem início está ganhando visibilidade. O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, propôs a convocação de um plebiscito para descriminalizar o aborto. Já o Supremo Tribunal Federal (STF) acaba de realizar sua primeira audiência pública, na qual convocou cientistas e bioeticistas de diversas orientações, em busca de subsídios técnicos para julgar a constitucionalidade da Lei de Biossegurança, que autoriza pesquisas científicas com células-tronco retiradas de embriões humanos.O dilema é aparentemente simples. Se a vida tem início na concepção, como querem os católicos e outros grupos em geral religiosos, todo óvulo fecundado faz jus às mesmas proteções conferidas a qualquer cidadão, o que tornaria o aborto e experimentos com células-tronco embrionárias (que por ora pressupõem a destruição do blastocisto) uma forma de assassinato. Caso contrário, o ovo não seria muito diferente de secreções humanas.
Eu havia dito "aparentemente" porque, se nos detivermos numa reflexão mais aprofundada, veremos que as coisas são bem mais complicadas por qualquer ângulo que analisemos. Comecemos pela esfera do direito, que é um pouco menos complexa que a filosófico-biológica.
Nem a lei vigente nem nenhuma legislação minimamente razoável considera um embrião como pessoa. Se assim fosse, estaria inaugurado o caos no campo jurídico, principalmente no que diz respeito às sucessões. Qualquer gravidez malograda bastaria para tornar a ex-futura mãe herdeira de metade dos bens do quase papai, mesmo que eles não tenham se visto mais do que uma única e fatídica vez. E não estamos falando dois ou três casos isolados, mas de um contingente de embriões de duas a três vezes maior que a população da Terra. É que de 2/3 a 3/4 dos óvulos fecundados por um espermatozóide jamais se fixam no útero, resultando em abortos espontâneos extremamente precoces, que não são percebidos nem pela mulher. Se a lei fosse como os católicos gostariam, o chamado golpe da barriga dispensaria a própria barriga.
Felizmente, nossos legisladores são um pouco mais sensatos que nossos padres e estabeleceram, para além de qualquer dúvida (cf. Código Civil, art. 2), que bebês só adquirem personalidade jurídica, isto é, o reconhecimento pleno dos direitos e garantias fundamentais da cidadania, ao nascer com vida, fato caracterizado por aquilo que os velhos alfarrábios de direito chamavam de "primeiro vagido".
Daí não se segue, é claro, que o feto esteja abandonado à própria sorte, sem nenhum tipo de proteção. Se você estava pensando em abrir um açougue especializado na venda de tenros vitelos humanos, esqueça. O mesmo artigo 2º protege os direitos dos nascituros "desde a concepção". Só que esses direitos não podem ser os mesmos concedidos a um ser vivo com personalidade jurídica --ou a lei jamais poderia autorizar aquilo que ela mesma qualifica como aborto necessário (art. 128 do Código Penal), que é o procedimento de interrupção da gravidez exercido por médico para salvar a vida da mãe.
Acho que isso basta para provar que não faz nenhum sentido jurídico equiparar o aborto a um assassinato. Aliás, nem a Bíblia o faz. No Êxodo 21:22-25, Deus estabelece: "Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes; mas se resultar dano, então darás [como pena] vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe". Parece forçoso concluir a partir daí que, para o Livro Sagrado, não é assim tão claro que a vida começa na concepção, ou a sanção para quem danifica um embrião não se limitaria a uma simples multa. Teria de valer a lei de talião dos últimos versículos. Se eu fosse maldoso, diria que os católicos estão aqui querendo ser mais divinos que o próprio Deus.
Bem, essa foi a parte fácil da tarefa a que me propus. Passemos agora ao pedaço difícil, que é tentar definir quando começa a vida.
Freqüentemente, quando temos dificuldade para encontrar respostas satisfatórias, é porque estamos fazendo a pergunta errada. Talvez não seja possível estabelecer um instante mágico que assinale a fronteira entre o não-vivo e o vivo. É verdade que a concepção parece ser o momento que marca o surgimento do indivíduo. Tomam-se duas partes que sozinhas não constituem nada (espermatozóide e óvulo), se as fundem e surge algo distinto delas, que é o código genético de uma pessoa singular.
Até aí eu chego, mas vale observar que as duas partes que sozinhas "não eram nada" já eram pelo menos vivas. Ou seja, a vida certamente não começou neste instante, ainda que possa ter ganhado aí sua identidade única.
Vamos complicar as coisas ainda mais um pouquinho. Avanços na embriologia mostraram que o instante da concepção não é exatamente um "instante". Entre a penetração do espermatozóide no óvulo e a fusão genética dos gametas ocorre um intervalo de 24 a 48 horas. Não poderíamos, então, interromper o processo duas ou três horas depois da passagem do espermatozóide pela parede do óvulo, mas ainda antes da antes da combinação? Até que instante dos inúmeros instantes que compõem o processo, o abortamento não configuraria a destruição de uma vida?
Deixemos, porém, essas curiosas questões de lado e nos concentremos no desenvolvimento do embrião. Ele é por certo uma vida em potência, mas ainda está muito longe de ser uma vida autônoma, isto é, capaz de sobreviver por si mesma. E, vale lembrar, negamos aos vírus o estatuto de ser vivo apenas porque eles não conseguem reproduzir-se sem parasitar uma célula hospedeira. Para o embrião humano ter alguma chance, ele necessita ainda permanecer num útero recebendo nutrientes e oxigênio por cerca de 40 semanas. No caso dos blastocistos utilizados para gerar culturas de células-tronco, falta até mesmo o útero. Suas chances de converter-se num ser humano são mais ou menos as mesmas de um espermatozóide ou um óvulo, sozinhos, virarem um bebê: muito próximas de zero.
E esse conceito de vida potencial é bastante traiçoeiro. Espermatozóides e óvulos também são "vida em potência". Dadas as condições certas, que incluem encontrar um gameta do sexo oposto num ambiente propício, podem dar origem a uma pessoa. Só que ninguém razoavelmente equilibrado cogita de mandar prender adolescentes que se masturbam, acusando-os de genocídio.
A verdade é que o surgimento da vida, mesmo que se a considere apenas no aspecto ontogênico, é um processo extremamente complexo. Quem procurar encontrar nele um instante privilegiado para definir o começo da existência humana vai quebrar a cara, pois qualquer momento escolhido se inscreve num "continuum" que não pode ser rompido.
É preciso, pois, que nos resignemos com uma definição totalmente arbitrária e puramente juspositiva para o início da vida. E, já que estamos "condenados" a essa escolha, é tolice nos impor as que sejam socialmente mais custosas. Lamentavelmente, porém, é o que ocorre no Brasil. Se fôssemos aplicar a lei de aborto como está escrita, precisaríamos construir 166,6 novos presídios femininos por mês (unidades de 500 vagas) todos os anos, para abrigar o cerca de 1 milhão de mulheres que interrompem ilegalmente suas gravidez. Como imagino que nem o Vaticano queira ver essa legião de moças atrás das grades, é bom pararmos de fingir que a realidade não existe.
Pessoalmente, não gosto da idéia de levar a questão a plebiscito, pois não considero que caiba a ninguém senão à mulher decidir se ela quer servir de hospedeira para um feto que irá sugar-lhe as energias e, em maior ou menos grau, colocar sua saúde em risco. Como, porém, não tenho o hábito de ignorar a realidade, e a legislação agora em vigor é uma das piores possíveis, prefiro o plebiscito ao "statu quo". Ele pelo menos nos faria debater questões mais interessantes do que a entrada do PMDB na base governista.
PS - Não poderei escrever a coluna na semana que vem; retomo-a no dia 8.
Hélio Schwartsman, 41, é editorialista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - |