Experimento põe em questão o realismo da realidade.


Teste realizado com luz sugere que a idéia de que as partículas têm propriedades bem definidas, mesmo antes de serem observadas, pode não ser verdade.

Carlos Orsi

SÃO PAULO - No cotidiano, geralmente esperamos que eventos próximos nos afetem antes que eventos distantes, e que os objetos tenham propriedades bem definidas: se seu carro é verde, você espera que ele continue assim, mesmo quando não houver ninguém olhando. Cientistas chamam essas duas pressuposições de "localidade" e "realismo". Elas podem parecer óbvias, mas entre os componentes mais básicos da matéria, no chamado nível quântico, nem sempre são verdadeiras.

Experimentos realizados nas últimas décadas já haviam levado muitos cientistas a aceitar abrir mão da localidade. Agora, uma nova experiência, descrita na edição desta semana da revista Nature, indica que, no fim, o realismo também pode estar em maus lençóis.

"Realismo" é definido, no artigo da Nature, como a afirmação de que "todo resultado de uma observação depende de propriedades preexistentes dos objetos, que são independentes da observação". Então: se o realismo precisa ser revisto, isso significa que seu carro não é verde quando ninguém está olhando?

"Não acredito que a consciência da pessoa que realiza a observação tenha um papel", diz um dos autores do trabalho, o austríaco Markus Aspelmeyer. "Para realizar uma observação, basta haver uma interação com um sistema físico complexo o bastante para guardar informação de modo irreversível". Ele dá um exemplo: "O ´clique´ de um detector de fótons responde pela geração, irreversível, de milhões de elétrons".

Lógica aristotélica

O experimento realizado pela equipe de Anton Zeilinger e Markus Aspelmeyer envolveu a análise de uma propriedade de pares de fótons, ou partículas de luz, chamada polarização.

A partir de um trabalho teórico realizado pelo físico Anthony Leggett, ganhador do Prêmio Nobel de Física de 2003, a equipe austríaca deduziu uma série de resultados que deveriam surgir se algumas teorias que defendem o realismo - mesmo abrindo mão da localidade - fossem válidas. Realizando experimentos, constataram que os resultados esperados não se concretizaram.

Isso sugere, segundo as considerações finais do artigo, que "qualquer futura extensão da teoria quântica que esteja em concordância com os experimentos terá de abandonar certas características das descrições realistas", e que uma insistência na não-localidade poderá levar a resultados ainda mais bizarros, como o colapso da "lógica aristotélica... e da ausência de ação sobre o passado".

Questão de gosto?

Em comentário ao artigo, publicado na mesma edição da Nature, o físico francês Alain Aspect argumenta que, a despeito do experimento, a opção entre não-localidade e não-realismo é uma "questão de gosto", já que o resultado "implica apenas que realismo e um certo tipo de não-localidade são incompatíveis. Há outros tipos de modelos não-locais".

"Leggett demonstrou que a pressuposição conjunta de não-localidade de uma noção específica de realismo físico, de que fótons têm polarização independentemente das observações e obedecem à Lei de Malus (uma relação estatística, já comprovada), está em conflito com a teoria quântica", responde Aspelmeyer. "Nosso experimento mostra a validade das previsões quânticas. A conclusão logicamente correta é que pelo menos uma das pressuposições está errada".

Mesmo acreditando que os resultados que enfraquecem o realismo poderão se aplicar no campo macroscópico, "ao menos na medida em que formos capazes de observar fenômenos quânticos em sistemas macroscópicos", Aspelmeyer reconhece que essa ocorrência seria, para dizer o mínimo, intrigante: "De que modo uma propriedade macroscópica poderia não obedecer ao realismo? Isso demonstraria a estranheza da teoria quântica em sua forma mais radical".

Aspelmeyer responde, em uma palavra, à questão de se esses resultados poderiam ser usados, de forma legítima, para apoiar algumas correntes místicas que vêm se apropriando da linguagem da teoria quântica. Afinal, se o realismo é falho, será que o poder do pensamento positivo pode fazer seu carro mudar de cor?

A palavra é: "Não".