Três Netunos e um cinturão.

Grande parte do charme do Sistema Solar é que tivemos um bocado de tempo para dar bons nomes a seus componentes. Quando falamos do Sol, da Terra, de Marte, imagens incríveis imediatamente saltam em nossas cabeças. Mas o que dizer de HD 69830?

Bem, se você for um interessado em astronomia, saberá que se trata do nome-código de uma estrela. Se for realmente um aficcionado, talvez saiba que o nome advém do fato de essa estrela estar marcada no Catálogo Henry Draper com o número 69830. Resumindo para meros curiosos o significado disso, humpf.

Pois é. Foi com esse sonoro "humpf" que parte da imprensa recebeu as últimas notícias de HD 69830, que estrelou num artigo publicado na semana passada na revista científica britânica "Nature" por um grupo europeu de pesquisadores. Talvez não quisessem deixar uma estrela com um nome tão sem-graça ficar com o ego inflado, depois de já ter aparecido na  Folha no ano passado (link só para assinantes).

Na ocasião, astrônomos americanos haviam detectado um cinturão de asteróides --muito maior do que o existe entre as órbitas de Marte e Júpiter-- orbitando essa estrela. O feito só havia sido possível graças aos "olhos de lince" infravermelhos do Telescópio Espacial Spitzer. Mas agora a coisa ficou muito mais interessante.

ESO
Concepção artística do sistema planetário descoberto em HD 69830
Concepção artística do sistema planetário descoberto em HD 69830
Portanto, senhoras e senhores, peço que ignorem o fato de que só mencionaremos objetos com nomes oficiais sem-graça e saboreiem uma viagem de 41 anos-luz até HD 69830, cortesia da dupla Michel Mayor e Didier Queloz, do Observatório de Genebra.

Em seu mais recente estudo, esses dois danadinhos (responsáveis pela detecção do primeiro planeta fora do Sistema Solar, em 1995) revelaram a presença de três planetas ao redor de HD 69830. Quer saber os nomes deles? HD 69830b, HD 69830c e HD 69830d. Para facilitar a nossa vida, e não inventar moda, vou chamá-los, a partir de agora, de Bê, Cê e Dê (apesar da tentação de usar Huguinho, Zezinho e Luisinho). Tudo bem? Vamos em frente.

Esses três planetas não são os "mais quentes", os "mais frios", os "mais bonitos", os "maiores" ou os "menores" já vistos, nem essa é a primeira vez que os cientistas anunciam a descoberta de uma pequena coleção de planetas ao redor da mesma estrela, o que pode ter ajudado a produzir a tal reação "humpf". Mas, tomados em conjunto, eles podem ser os mais interessantes já vistos.

Primeiro, eles se parecem muito, em termos de suas posições, com o nosso querido Sistema Solar. Por aqui, a um raio de unidade astronômica do Sol existem três planetas, Mercúrio, Vênus e Terra. (A UA é convencionada como a distância média Terra-Sol, cerca de 150 milhões de quilômetros.) Em HD 69830 também, embora lá os planetas estejam mais espremidos.

ESO
O sistema planetário de HD 69830, imaginado por outro ângulo
O sistema planetário de HD 69830, imaginado por outro ângulo

Bê é o mais afobado dos três: completa uma volta ao redor de seu sol em pouco menos de nove dias terrestres. Imagine comemorar um aniversário a cada nove dias! Seria Matusalém um beano? Hmm, acho que não, pois o ambiente deve ser muito quente por lá, tão perto da estrela. Cê também não é uma boa escolha -- o ano ceano dura 31,6 dias terrestres, e o calor também não deve ser tão agradável.

Chegamos então ao verdadeiro astro do sistema: Dê.

Localizado a cerca de 0,63 UA de seu sol, ele completa uma volta inteira em torno da estrela a cada 197 dias terrestres. Sua órbita é pouquíssimo oval, fazendo com que haja relativamente pouca variação de temperatura ao longo do ano. E agora sim a notícia mais sensacional: ele está na chamada "zona habitável".

Como HD 69830 é um pouco menor e menos brilhante que o Sol, a região em torno da estrela que recebe radiação suficiente para manter a água em estado líquido na superfície de um planeta fica mais próxima do astro central que aqui no Sistema Solar. Então, Dê é um planeta que, em tese, poderia ter água líquida em sua superfície. Com a água vem a vida, pensam hoje em dia os cientistas.

No entanto, nem tudo são flores. Dê, ao que parece, é um planeta gigante gasoso, parecido com Urano ou Netuno. Sua massa é, no mínimo, 18 vezes maior que a da Terra, e boa parte disso consiste num grande invólucro atmosférico. Cê e Bê também são grandalhões, com 11,8 e 10,2 vezes a massa terrestre, mas os cientistas liderados por Mayor e Queloz suspeitam que eles sejam rochosos (mais como Terras avantajadas).

O mais importante dessa descoberta, além de nos permitir imaginar um sistema planetário realmente interessante, é que ela demonstra que a técnica mais usada para detectar planetas fora do Sistema Solar (baseada em detecções do bamboleio da estrela-mãe ao ser puxada suavemente pelos planetas em suas órbitas) pode ser usada para encontrar planetas gêmeos da Terra, com porte similar ao terrestre e na zona habitável do sistema, ao redor de estrelas menores que o Sol.

Outra coisa curiosa é que os planetas descobertos em HD 69830 graças às observações feitas no ESO (Observatório Europeu do Sul), no Chile, estão em órbitas quase circulares --indicando que o sistema é estável por um longo período de tempo. Além disso, o achado é um testemunho de que não é necessário ter um gigante como Júpiter num sistema planetário. Na estrela HD 69830, até onde os cientistas puderam detectar, não há nenhum.

Finalmente, tudo que sabemos de planetas gigantes, com base no Sistema Solar, indica que eles são propensos a ter várias luas. Talvez Dê não seja um bom local para se viver, mas uma lua ao redor dele, beneficiada pela localização na zona habitável, pode ser um ótimo abrigo para a vida.

A busca esquenta mais a cada dia. Não perca o próximo capítulo.

Salvador Nogueira, 27, é jornalista de ciência da Folha de S.Paulo