Brasileiro flagra o suicídio de uma estrela.
Imagine um sujeito que acha que vai viver cem anos descobrir, de repente, que tem no máximo mais dez meses pela frente. Esse diagnóstico nada auspicioso acaba de ser feito por astrônomos brasileiros para uma estrela dupla situada no centro da Via Láctea. É a primeira vez que se prevê a morte súbita de um objeto desse tipo.Súbita, é claro, para os padrões astronômicos. "A hora da morte pode ser entre amanhã e daqui a 1 milhão de anos. Em astronomia, isso é um tempo curtíssimo", diz o astrônomo João Steiner, do IAG (Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas) da USP. Ele e três colegas integram a equipe "médica" que desenganou a estrela, descoberta por Steiner há 19 anos e batizada V617 Sgr.
Embora a origem da doença estelar fatal ainda seja desconhecida, os cientistas já sabem direitinho quais são os sintomas. A V617 Sgr é formada por um par de estrelas. E uma delas está literalmente devorando a companheira, tragando-lhe massa a uma velocidade extraordinária.
Esse canibalismo, uma espécie de duelo, é ruim para ambas. O processo pode terminar com a destruição da estrela companheira, sugada até ser evaporada por completo, ou com a explosão da anã branca, mais densa. Em ambos os casos, o sistema está condenado. Nesse ritmo, deve entrar em colapso daqui a 1 milhão de anos, no máximo.
Parece suicídio? Pois é exatamente assim que Steiner e seus colegas descrevem o fenômeno. O título do artigo científico no qual a bizarra patologia cósmica é apresentada tem o título de "Suicídio Estelar Assistido na V617 Sgr". Ele acaba de ser publicado no periódico "Astronomy & Astrophysics".
Longa observação
Embora a hipótese de morte súbita para estrelas binárias já houvesse sido proposta antes, Steiner diz que esta é a primeira vez que alguém vê o fenômeno. O trabalho foi feito com o auxílio de um telescópio do Laboratório Nacional de Astrofísica, em Minas.
A estrela suicida está na constelação de Sagitário, perto do centro da galáxia, a cerca de 24 mil anos-luz da Terra. Ela foi descoberta pelo cientista da USP em 1986. Variações de sua luminosidade enquanto ela girava em torno de si mesma fizeram Steiner e seus colegas suporem que se tratava de um sistema binário, com duas estrelas que dançam juntas.
Mas desde o começo parecia uma binária esquisita. Ela pertence a uma categoria rara de objeto celeste, da qual só existem na Via Láctea quatro representantes --deveria haver centenas. Essa classe de estrela dupla é composta por uma estrela primária pouco densa e uma anã branca, uma estrela morta. Apesar de não fazer fusão nuclear em seu centro, a anã branca acaba brilhando porque é mais densa e atrai gravitacionalmente matéria da companheira.
No caso da família da V617 Sgr, a transferência de massa é cem vezes maior que o normal. Esse almoço violento produz reações nucleares na superfície da anã branca. Tais reações produzem uma espécie de vento estelar, que evapora a estrela menos densa.
Alguém tem de morrer
Para tentar saber o que aconteceria com a estrela, o grupo da USP começou a monitorar o chamado período da binária --o tempo que o par leva para girar em torno de si mesmo.
O período foi determinado de uma maneira para lá de precisa: "É de 4 horas, 58 minutos, 19 segundos e 114 milésimos de segundo", declina Steiner. E está aumentando cada vez mais, o que significa que a anã branca está "engordando" rapidamente.
O destino final da binária vai depender da massa da estrela canibalizada. Mas uma das duas vai morrer. Se no fim da refeição a anã branca ficar com massa superior a 1,4 vez a do Sol, ela explode como uma supernova do tipo 1a --objeto usado pelos astrônomos como guia para calcular a expansão do Universo. Para Steiner, isso é importante: trata-se de um mecanismo até agora desconhecido a explicar a produção desse tipo de supernova. Mas a "morte súbita" também esclarece por que estrelas do tipo da V617 Sgr são tão raras. "Elas surgem e somem. Isso explica por que está faltando estrela", diz o astrônomo.
CLAUDIO ANGELO