Cuidando da Criança que está Perto e Dentro de Nós.

Lembrar o mundo infantil é mergulhar em nosso mundo de fantasias, de buscas, de descobertas incríveis, vasculhar o que há de mais original e espontâneo em cada um de nós. Os adultos, infelizmente, reagem diante do mundo infantil com bastante preconceito e, eu diria, até com um pouco de inveja de um tempo que não viveram plenamente. É comum encararmos esse mundo como algo em que temos doutorado, que somos experts. Estabelecemos então todas as regras necessárias para as crianças com as quais convivemos, crendo que se cumprirem cada uma delas serão felizes. Feita a programação, nós ficamos tranqüilos e com uma agradável sensação de missão cumprida. Só, por via de dúvidas, complementamos a estratégia com um reforço positivo adequado ao momento.

É isso mesmo, a maioria dos adultos trata as crianças como se elas não tivessem nenhuma sabedoria em relação ao que desejam, ao que é essencial para a vida delas. Em nosso relacionamento com elas usamos a mesma prática de condicionamento utilizada nos laboratórios de psicologia experimental e uma metodologia semelhante à utilizada nos ratinhos. Nosso objetivo é obter as respostas que achamos convenientes a partir do nosso ponto de vista. Na verdade, limitamos o seu campo da experiência e não permitimos que elas sejam crianças. É comum ouvirmos quando alguém faz uma coisa boba ser rotulada imediatamente de criança. Quando rotulamos alguém dessa forma não estamos sendo justos com as crianças. A criança não é sinônimo de gente boba, imaturidade, idiotice e irresponsabilidade. No entanto, já usamos ou já presenciamos muita gente usando o termo infantil de forma pejorativa.

Urge que cada um de nós possa usar de sensibilidade para descobrir o quanto ainda resta da beleza do mundo infantil em nossas mentes e corações. Na verdade, um monte de coisas essenciais que nós esquecemos de colocar em nossos projetos. Saint-Exupéry nos traz um grande desafio em sua obra "O Pequeno Príncipe". Ele quer que percebamos nossa grande facilidade em distorcer os valores da infância: "as pessoas grandes só se interessam por números." Não sabemos ver o carneiro que está além da caixa e é exatamente isso que nos envelhece - a perda da nossa capacidade de imaginar e de fazer com que os nossos sonhos aconteçam diante dos nossos olhos. A imaginação nos torna mais criativos e capazes de cavalgar nossos sonhos, mesmo assim a abandonamos pela maturidade do adulto e nos distanciamos do que realmente desejamos em nossa realidade.

Seria muito bom se reservássemos alguns momentos para identificar os valores da infância que ainda insistem em nos habitar. Somos transparentes em nossas relações? Ainda temos a insaciável sede de descobrir coisas novas ao nosso redor? Valorizamos imensamente as nossas amizades e o momento de estar com o outro? Uma criança deixa tudo, esquece tudo para reservar um tempo para seus amigos. O adulto vai esquecendo aos poucos esse valor, substituindo-o pelos compromissos que lhe possibilitam acumular bens. Tornamo-nos seres sem tempo e mais um valor vai por água abaixo: o de cativar, criar laços afetivos, pois é impossível conhecer, se aproximar e ser presença sem que haja a disponibilidade necessária.

Junto com esses e outros valores vamos desprezando as pedras preciosas do mundo infantil e deixando de ver as coisas com o coração. Enfim, deixamos de perceber que "o essencial é invisível aos olhos". Sabe o que estamos presenciando às margens do terceiro milênio? Mais e mais crianças sendo moldadas e convertidas em adultos sem direito à regressão. Não estamos permitindo que a criança tenha uma vida plena, que ela possa ser. Carl Rogers, psicólogo que nos propõe a abordagem centrada na pessoa, ficaria furioso se pudesse constatar o que as sociedades atuais fazem com suas crianças. A começar pelos meios de comunicação que impõem à nova geração perfis de adultos-marionetes e seres dançantes erotizados. E nós, adultos, reforçamos cada parágrafo desse roteiro maquiavélico.

Achamos o máximo, a ponto de reunir um grande grupo para ver nossas crianças imitando os artistas que estão em alta nas telinhas. Não queremos fazer aqui uma crítica à beleza do corpo, ao erotismo ou à sensualidade. Todas essas coisas também são valores e são indispensáveis à construção do nosso eu em sua totalidade. Desejamos detectar quais valores da infância foram abandonados para se viver o papel de um adulto e o que representam essas coisas para a identidade da criança. Quando a criança vive simplesmente um estereótipo deixa de construir sua própria experiência e passa a reproduzir unicamente a experiência do adulto, perdendo aos poucos a consciência de suas próprias necessidades.

A criança que faz da sua vida uma constante reprodução da vida adulta exclui a oportunidade de viver plenamente o seu momento infantil. Essa criança vai perdendo cada vez mais a confiança que deveria ter em si mesma e em suas reações organísmicas. Tudo isso é uma pena, porque num projeto como esse não está incluído a possibilidade do novo e uma pessoa não pode afirmar que vive plenamente se não consegue experimentar a liberdade e a sua capacidade criativa.

Estamos crescendo, deixando de ser criança e esquecendo o nosso ser criança. Será que estamos crescendo mesmo? O doloroso não é constatarmos as mudanças físicas, o surgimento de rugas ou que já não acreditamos mais em Papai Noel, em fadas madrinhas e outras coisas do mundo da fantasia. O grande mal é constatarmos a perda da esperança, da transparência, da espontaneidade, da originalidade, da sensibilidade e da crença no potencial do amor em nossas vidas. Aí, amigos, podemos dizer com todas as letras: estamos ficando velhos!

Prevenir, portanto, ainda é melhor que remediar. Se tentarmos a experiência de tocar com carinho a criança que está perto de nós ou a que está dentro de nós, lhe dirigirmos palavras de quem acredita em suas potencialidades e olharmos bem dentro dos olhos dela, veremos que o melhor presente que ela nos pede é a possibilidade de viver plenamente o seu tempo e diante de todas as exigências de uma sociedade adulta, simplesmente ser criança.

*Psicoterapeuta, Escritor

Jornal Corpo Mente
Feira de Santana, setembro de 2003.