Cantadas de uma anã branca.

A notícia hoje vem de Sírius. Então, quando sair lá fora à noite, a partir de umas nove horas, olhe para o céu e procure a estrela mais brilhante. Não a oeste (onde o Sol se põe), pois lá você encontrará Vênus --ainda mais esplendoroso, correndo atrás do disco solar, que a essa altura já se escondeu atrás do horizonte. Na verdade, a estrela que você está procurando está na direção oposta, baixa, a leste. Com o passar das horas (por conta da rotação da Terra), ela fará a travessia completa do céu, de forma que você poderá encontrá-la lá em cima durante a madrugada. (Bom xaveco esse, diga-se de passagem.)

ESA/Nasa
Imagem do telescópio Hubble mostra o par Sírius A e B
Imagem do telescópio Hubble mostra o par Sírius A e B
Conhecida desde tempos imemoriais, Sírius foi parte da mitologia de muitas culturas. Serviu por exemplo, nos tempos antigos, para indicar a época de cheia do rio Nilo. Também chamada Alfa Canis Majoris (principal estrela da constelação de Cão Maior), se manteve como um astro de interesse entre os astrônomos modernos. Em 1844, após 11 anos de observações, o alemão Friedrich Wilhelm Bessel concluiu que aquela estrela deveria possuir uma vizinha próxima. Em 31 de janeiro de 1862, o americano Alvan Graham Clark confirmava essa previsão: Sírius tinha mesmo uma companheira. (O xaveco continua!)

As duas estrelas são relativamente jovens, com uns 250 milhões de anos. O nosso Sol, em comparação, possui cerca de 5 bilhões de anos. Sírius A, hoje a maior das duas, possui pouco mais de duas vezes a massa do Sol. E a novidade: sua companheira acabou de ser "pesada" com precisão por um grupo internacional de astrônomos liderados por Martin Barstow, da Universidade de Leicester, Reino Unido, graças à ajuda do sempre espetacular Telescópio Espacial Hubble.

ESA/Nasa
Concepção artística do sistema binário Sírius A e B
Concepção artística do sistema binário Sírius A e B
Sírius B, eles dizem, tem hoje o equivalente a 98% da massa do Sol. Mas, segundo os astrônomos, o passado deve ter sido muito mais glorioso. Cerca de 125 milhões de anos atrás, ela deve ter sido uma estrela com massa equivalente à de cinco sóis. E aqui termina o xaveco: Sírius B, hoje, está morta. É um cadáver. Também é possível chamá-la pelo eufemismo técnico: anã branca.

É o mesmo destino que aguarda o Sol. Na semana passada, já falei um pouco sobre o futuro da nossa própria estrela, mas confesso que deixei faltar o capítulo final. Então, aqui vai ele.

Depois de agonizar longos bilhões de anos como uma gigante vermelha, há um ponto em que a gasolina da estrela --átomos passíveis de promover fusão nuclear-- acaba de vez. Então, num arroubo final, as camadas externas do astro são expulsas, dando origem a uma nebulosa. No interior, a ausência da fusão deixa a matéria remanescente à mercê da gravidade, que promove intensa compactação. Esse material restante se reúne para formar a chamada anã branca, que não necessariamente é branca, mas sem dúvida é anã.

ESA/Nasa
Imagem compara o tamanho de Sírius B com a Terra
Imagem compara o tamanho de Sírius B com a Terra
Sírius B, por exemplo, é uma anã branca azulada --ainda muito quente (cerca de 25 mil graus na superfície) em razão da compactação recente, mas incapaz de produzir energia para conservar o calor. Sua massa, praticamente um Sol inteiro, está reunida num corpo ligeiramente menor que a Terra! Segundo Barstow e seus colegas, a estrela hoje tem um diâmetro de apenas uns 12 mil quilômetros. (A Terra, em comparação, tem 12.756 km.)

Embora seja praticamente do mesmo tamanho que o nosso planeta, é bom que ninguém decida passar as férias em Sírius B. Um ser humano de 68 quilos chegará à superfície da estrela pesando a bagatela de 25 mil toneladas. Pois é, tamanho não é documento: embora pequeno, o cadáver estelar tem muita massa, e é ela a responsável pela intensidade da força gravitacional.

Para os astrônomos da Terra, é uma bênção. A forte gravidade de Sírius B imprime certas características à luz que o astro emana. Interpretando essa "assinatura" com as equações da teoria da relatividade geral, os cientistas podem então calcular coisas como a massa e o tamanho. E as novas observações do Telescópio Espacial Hubble, publicadas no periódico "Monthly Notices of the Royal Astronomical Society", permitiram as mais precisas estimativas, ao captar a luz da anã "descontaminada" das emissões de Sírius A, a estrela maior e mais brilhante.

Mais do que um objeto interessante, Sírius B é a melhor oportunidade para que estudemos o futuro do Sol. Embora hoje os astrônomos conheçam muitas anãs brancas, esta é a que está mais próxima da Terra, a 8,6 anos-luz daqui --o que é realmente muito pouco, em termos astronômicos. Para efeito de comparação, o sistema estelar mais próximo, Alfa Centauri, está a 4,3 anos-luz. (Vamos combinar que um ano-luz é a distância que a luz atravessa em um ano, aproximadamente 9,5 trilhões de quilômetros.)

Entretanto, o melhor de tudo para mim é outra coisa: a simples noção de que cada pequeno ponto brilhante lá em cima tem sua própria história. Que pode haver de mais apaixonante para um ser humano do que decifrar essas narrativas cósmicas e poder compartilhá-las sob um céu estrelado?
Salvador Nogueira, 26, é repórter de Ciência da Folha e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online.