Morte e renovação, tudo ao mesmo tempo e agora.
O nome é Eta Carinae, mas poderia bem ser rebatizada como Estrela da Morte (se alguém se dispusesse a pagar os royalties ao George Lucas, claro). Trata-se de um astro binário, ou seja, composto por dois objetos, localizado a uns 7.500 anos-luz de distância, com massa total equivalente à de uns 160 sóis. E a má notícia: a maior das estrelas do par está nas últimas, prestes a morrer. Os cientistas não acham absurdo dizer que ela pode ir desta para uma melhor --explodir numa hipernova-- a qualquer minuto.Reprodução/STScI |
Imagem do Hubble mostra Eta Carinae envolta em gás |
Pode não ser suficiente.
Os astrofísicos hoje acreditam que a morte de estrelas desse porte em hipernovas (termo usado para designar uma supernova "sarada") venha acompanhada pela emissão de um violento disparo de raios gama --para os íntimos, um GRB (sigla em inglês para "gamma-ray burst"). Essa radiação é composta pelas mesmas partículas de que a luz é feita, mas o conteúdo de energia em cada pequeno "pacote" é imenso. É seguro dizer que os GRBs representam as mais energéticas explosões do Universo. Pois bem, Eta Carinae está às vésperas de arrotar seu GRB.
É quando entra o novo estudo de Brian Thomas, da Universidade do Kansas, e colegas. Recém-publicado no prestigioso periódico científico "The Astrophysical Journal", o artigo descreve o resultado de uma tonelada de simulações dos efeitos de um GRB na atmosfera terrestre. As notícias não são boas. Segundo o grupo, mesmo gerado a uma distância de cerca de 6.500 anos-luz (ou dois quiloparsecs, como eles preferem dizer), um disparo de raios gama pode fazer grandes estragos na Terra.
Como? Bom, para começar, a energia dos raios gama desfaz as moléculas de ozônio (O3) na alta atmosfera. A perda global seria de aproximadamente 38%, mas na região mais afetada o número está mais para 74%. A destruição é persistente: as simulações mostraram que haveria uma redução global de ozônio na faixa de 10% mesmo sete anos após a incidência do GRB. A Terra levaria algum tempo para se recuperar.
Sem o ozônio, a atmosfera não serve de proteção contra os raios ultravioleta vindos do Sol. Menos poderosos que os raios gama, mas mais agressivos que a luz comum, os famigerados UV são conhecidos pelos danos que causam ao DNA --molécula que armazena o código genético das criaturas vivas. De acordo com Thomas e seus colegas, a catástrofe causaria uma incidência 16 vezes maior de danos no DNA do que a atual --dose que seria letal para muitas formas de vida mais simples.
A coisa não pára por aí. Com o excesso de raios ultravioleta, as moléculas de nitrogênio na atmosfera se dissociariam, formando óxido nítrico (NO2), gás que reflete mais a luz solar, impedindo-a que chegue ao solo. Resultado: redução da claridade, acompanhada por mudança climática --resfriamento global. Para concluir, a dissociação dos componentes atmosféricos também levaria à produção de HNO3 --ácido nítrico. Temporais de chuva ácida à frente, capitão!
Resumo da ópera: um dia negro na história da Terra.
Felizmente, um disparo de raios gama suficientemente próximo do planeta para causar esse tipo de estrago acontece raras vezes. A estimativa dos cientistas é que um evento desses ocorra mais ou menos a cada bilhão de anos. Mesmo assim, como a Terra tem já seus respeitáveis 4,7 bilhões de anos, vez por outra já deve ter sido vitimada por um episódio do tipo.
Brian Thomas e seus colegas defendem que uma das grandes extinções em massa ocorridas no planeta, há 443 milhões de anos, pode ter sido ocasionada por um GRB. Foi a segunda maior matança da história terrestre. A próxima, quem sabe, pode muito bem ser ocasionada por Eta Carinae.
Stefan Ivarsson/Nasa |
Concepção artística mostra as duas estrelas que compõem Eta Carinae |
O que podemos fazer então para evitar essa tragédia? Em uma palavra: nada. Diferentemente de outros eventos causadores de extinção mais comuns (como asteróides em colisão ou primatas metidos a inteligentes que entopem sua atmosfera de gás carbônico e queimam suas florestas para plantar soja), não há nada que se possa a fazer a respeito disso. No máximo, podemos tentar evitar os efeitos mais deletérios. Augusto Damineli, por exemplo, que é astrônomo da Universidade de São Paulo e possivelmente o maior especialista do mundo em Eta Carinae, recomenda (meio em tom de brincadeira, é verdade) que, caso a explosão aconteça durante o nosso tempo de vida, simplesmente nos mudemos todos para o hemisfério Norte. Como a estrela moribunda é visível apenas no céu do hemisfério Sul, o "lado de lá" do planeta não será exposto aos raios gama e será menos vulnerável aos efeitos.
Ei, volte aqui. Não faça as malas ainda. A explosão de Eta Carinae vai acontecer em breve, mas quão breve ninguém sabe ao certo; é algo que pode acontecer nos próximos 10 mil a 100 mil anos. Tem chão ainda. Ainda assim, somos obrigados a confrontar o fato de que o Universo, quando quer, pode ser bem hostil à vida. Será mesmo?
Acredite, há uma maneira positiva de encarar tudo isso. Danos ao DNA, na forma de mutações, normalmente causam morte e extinções. Mas também são os motores da evolução das espécies. Talvez o mesmo fenômeno que leve à morte de zilhões de criaturas também seja o responsável por dar empurrões adicionais à evolução da vida, acelerando momentaneamente as taxas de mutação e promovendo a diversificação genética. O que da nossa perspectiva egoísta e antropocêntrica pode parecer destruição pura e sem sentido talvez seja na verdade um ciclo de renovação e eterna transformação do ponto de vista do Universo.
Trocando em miúdos: desgraças acontecem. Mas a vida continua.
Salvador Nogueira, 26, é repórter de Ciência da Folha e autor de "Rumo ao Infinito: Passado e Futuro da Aventura Humana na Conquista do Espaço". Escreve às quintas para a Folha Online. |