As águas invadiram e invadirão Ribeirão Preto.

Marcelo Botosso*

“As águas invadiram ruas, avenidas, casas e lojas causando grandes prejuízos à população”. Assim começou o noticiário regional prometendo dar ampla cobertura sobre as enchentes ocorridas no início da semana.
Mas antes de comentar os fatos, vamos aos conceitos. No movimento ambientalista definimos por cheia aquele fenômeno cujas águas fluviais (águas dos rios) somam-se às águas pluviais (águas das chuvas) e, devido ao excesso acumulado, freqüentemente unindo-se a outros motivos, transbordam da calha normal dos rios provocando alagamentos às regiões circunvizinhas. Essas regiões comumente chamamos de várzeas.
A natureza “criou” a várzea como área destinada ao excedente de água que surge de tempos em tempos com as chuvas, por vezes propiciando um ecossistema próprio de várzeas alagadiças. Fauna e flora se adaptam a esse meio dando prosseguimento ao imprescindível ciclo da vida. Portanto, cheia não passa de um fenômeno natural e necessário à continuidade da vida.
Por outro lado, enchente se dá quando reservatórios naturais de água, no caso as várzeas, são ocupados irresponsavelmente por ruas, prédios, avenidas e outros tipos de construções que além de impermeabilizarem o solo, impedindo o escoamento natural das águas, ainda expulsam e matam os habitantes - animais e vegetais - que até então viviam naquelas localidades. Portanto o conceito de enchente deve ser aplicado às inundações cuja origem está na intervenção do homem no meio ambiente causando danos às populações.
Por conseguinte, enchente é sinônimo de destruição e morte. Logo, enchente e cheia acabam tendo definições diametralmente opostas quanto às relacionamos com a questão vida.
Feito essa rápida conceitualização, voltamos os fatos: Na segunda do dia 20 de dezembro de 2004, a cidade de Ribeirão Preto amanheceu alagada. Lama, desespero, dor e destruição sinalizavam que a cidade não se preparou para a intensa chuva que desaguou.
As águas tomam ruas e construções, famílias inteiras foram desalojadas. O trânsito pára no centro da cidade. Comerciantes lavam, limpam e tentam reestruturar seus estabelecimentos, posteriormente contabilizando seus prejuízos.
O prefeito municipal decreta estado de calamidade pública. A defesa civil não dá conta do trabalho diante das inúmeras ocorrências. Os córregos vomitam águas barrentas. Órgãos públicos também são afetados. Praças e jardins ficam encharcados. Os sonhos de uma dona de casa escoam pela enxurrada. Imagens trágicas e espetaculares vão ao ar.
A euforia do natal cede lugar à tristeza. O clima é de revolta e desilusão. O ribeirão-pretano, de forma direta ou indireta, é atingido pela inundação, afogando sua alegria na fragilidade daquela situação. Casas são violadas pelas torrentes das águas.
Nem mesmo muros resistem a força da natureza. A correnteza leva sonhos, adentrando nas privacidades. Submergem esperanças.
Móveis e utensílios domésticos chafurdam na lama. As águas ocupam lares sem pedir permissão. Tudo isso o noticiário abordou. É entristecedor.
Entretanto fica uma pergunta: Quem invadiu quem?

*Historiador e membro do NESA (Núcleo de Educação Sócio-Ambiental)
Publicado Jornal A Cidade 20/12/04