Terra acumula mais calor do que dissipa.
Dito assim, a seco, o número 0,85 Watts por metro quadrado parece tão irrelevante quanto enigmático. Mas essa cifra, que acaba de ser calculada por um grupo de cientistas americanos, é a mais nova medida da tragédia do clima: ela expressa a diferença entre o quanto a Terra absorve de radiação do Sol e o quanto ela emite de volta para o espaço.A conseqüência prática do desequilíbrio energético --mais radiação chega ao planeta do que sai dele--, é que a Terra aquecerá pelo menos 1ºC a mais neste século, mesmo que as concentrações de gases que causam o aquecimento global fossem estabilizadas hoje.
Esse aumento, somado ao 0,7ºC que já ocorreu no século 20, consiste em uma "interferência perigosa" da humanidade no clima da Terra, segundo o líder do grupo de cientistas, James Hansen. "Interferência perigosa" é um eufemismo para catástrofe: o nível dos mares aumentará a ponto de afetar cidades costeiras como o Rio e Nova York, secas trarão fome para grandes porções do Terceiro Mundo e doenças tropicais atingirão zonas temperadas.
Há muito os cientistas suspeitam que atividades humanas como a agricultura e a queima de carvão e petróleo esteja causando um desequilíbrio grande no balanço energético da Terra. Sem poder escapar para o espaço por causa de um cobertor de gases na atmosfera, o calor irradiado pelo planeta acaba aumentando a sua temperatura.
"Ao longo dos anos, numa situação normal, o que se esperaria era um equilíbrio entre a radiação que entra e a que sai", disse à Folha o climatologista Carlos Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
No entanto, apesar das suspeitas de que um desequilíbrio existisse, até hoje ninguém o havia comprovado. A confirmação apareceu num estudo assinado por Hansen e seus colaboradores, da Nasa (agência espacial dos EUA) e da universidade americana Columbia, publicado on-line ontem pelo periódico científico "Science".
"Esse desequilíbrio energético é a prova do crime que estávamos procurando", disse Hansen, cientista-chefe do Instituto Goddard para Estudos Espaciais, da Nasa.
Para calcular o tamanho da anomalia, Hansen usou um modelo climático em computador, que leva em conta o comportamento da atmosfera e dos oceanos e os chamados agentes de forçamento radiativo --todos os elementos que esquentam o planeta, como gases de efeito estufa e fuligem, e que o resfriam, como alguns tipos de aerossol e poeira proveniente de erupções vulcânicas.
Os dados obtidos pelo modelo foram, então, comparados a medições reais da temperatura dos oceanos, principal reservatório para o excesso de calor aprisionado no planeta --que confirmaram a hipótese dos cientistas.
O desequilíbrio ocorre por causa da inércia térmica do oceano, um fato físico bem conhecido de qualquer pessoa que vá à praia. O mar demora muito mais tempo que a areia, por exemplo, para absorver calor e emiti-lo de volta. "Não pode haver mais dúvidas substanciais de que gases emitidos pela humanidade são a causa da maior parte do aquecimento observado", disse o cientista.
A mensagem de Hansen, talvez a principal figura do meio científico a defender a idéia de que o aquecimento global é causado pelos seres humanos, tem destinatários certos: os chamados "céticos" do efeito estufa, entre eles o presidente dos EUA, George W. Bush.
A administração Bush tem preferido financiar pesquisas que busquem mais evidências de que o problema é real do que cortar emissões de gases-estufa, como exige o Protocolo de Kyoto, rejeitado pelos EUA em 2001.
Segundo Hansen e seus colegas --que admitem que seu modelo não é perfeito--, a hora é de tomar medidas drásticas para reduzir as emissões. "Se esperarmos mais evidências empíricas avassaladoras da mudança climática antes de agirmos, a inércia implica que mudanças maiores nos aguardam no futuro, que podem ser difíceis ou impossíveis de evitar."