Médicos e psicólogos estudam relação entre corpo, mente e doenças.
Em seus 84 anos de vida, Maria José Vasconcelos mal se lembra das poucas vezes em que ficou doente. O mérito pela boa saúde ela entrega a Deus, mas suspeita de que a forma como encara o mundo deve ajudar. "Estou sempre assim, rindo, feliz. Comigo não tem tempo ruim", diz, entre uma gargalhada e outra. "Acho que por isso também estou sempre saudável."
Essa filosofia de vida, dona Cotinha --como é conhecida pelos amigos da periferia de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, onde mora-- transmite às pessoas que atende como benzedeira. Para ela, a melhor bênção é aprender a encarar as dificuldades do mundo com serenidade: "Ficar choramingando não adianta nada". Encarada com algum grau de ceticismo, a receita de vida saudável de dona Cotinha desandaria em algo próximo da crendice ou do misticismo --não fosse a ciência ter enfiado a colher nesse caldo.
"Há pouco tempo deparávamos com situações clínicas que não compreendíamos, como pacientes obtendo resultados fantásticos apenas por acreditarem firmemente que iriam melhorar. Hoje compreendemos que existe uma interação clara entre as células do sistema imunológico e o cérebro, e que o estado de humor interfere em tudo isso", afirma José Roberto Leite, professor da Unidade de Medicina Comportamental da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e um dos pioneiros no estudo da relação mente-corpo no Brasil.
Estresse, ansiedade e depressão já receberam seus certificados de vilões da vida moderna. No lado oposto na escala do humor, a felicidade ocupa agora o posto de mistério a ser desvendado.
Uma série de estudos recentes associa otimismo, esperança, bom humor e fé a uma melhor resposta do sistema imunológico a diversas doenças, que vão de uma simples gripe a câncer e Aids. Pesquisadores têm posto à prova práticas que até então viam com maus olhos, como meditação e relaxamento.
"Se me perguntassem há alguns anos, eu diria que meditação era uma besteira, mas pus o preconceito de lado e fui testar. Hoje posso dizer que ela tem eficácia", afirma Leite, que liderou uma das pesquisas na área.
Ele submeteu 33 voluntários, selecionados após divulgação em jornais, a práticas de meditação e técnicas respiratórias de relaxamento por três meses. Ao final do estudo, constatou a diminuição dos níveis de ansiedade, depressão e da pressão arterial. "Hoje eu defendo que o comportamento e as emoções deveriam ser a preocupação central da medicina."
A premissa que dá a partida a todas essas pesquisas não diz respeito só à modalidade escolhida para encontrar equilíbrio, e sim à forma como a pessoa interpreta uma determinada situação. É isso quedeterminaria sua reação fisiológica. Indivíduos diferentes podem passar pelos mesmos traumas, mas alguns desenvolverão problemas psicológicos e de saúde e outros não. Assim como o estresse crônico pode debilitar o sistema imunológico, pressupõe-se que, ao reagir a situações estressantes de um modo mais equilibrado, é possível impedir tais efeitos maléficos.
"A partir do momento em que uma doença é causada ou agravada pelo estresse, a resposta de relaxamento pode ser considerada um tratamento efetivo", explica ao Equilíbrio Herbert Benson, diretor do Mind and Body Medical Institute, departamento da Escola Médica da Universidade Harvard.
Um grupo da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh, nos EUA, constatou que pessoas felizes apresentam três vezes menos possibilidade de contrair resfriados. Eles utilizaram 300 voluntários que, após entrevistas, foram divididos, de acordo com traços de personalidade, em categorias positivas (felicidade, satisfação e relaxamento) e negativas (angústia, hostilidade e depressão). Em seguida, receberam uma borrifada de um vírus que causa resfriados. Os que se encaixaram nas primeiras categorias ficaram menos doentes. Outro exemplo é uma série de estudos feita na Universidade da Califórnia com indivíduos HIV positivo. A psicóloga Shelley Taylor e Geoffrey Reed, um dos diretores da Associação Americana de Psicologia, avaliaram o impacto de diferentes situações no bem-estar dos pacientes.
Notaram que acontecimentos como a morte de um amigo ou do parceiro por Aids, o preconceito enfrentado por gays e ainda um pensamento negativo em relação à doença aceleravam o aparecimento de sintomas em pacientes até então assintomáticos, em comparação com aqueles que mantinham uma visão otimista sobre seu prognóstico. Em contrapartida, aqueles que, mesmo tendo perdido um parceiro, se mantiveram dispostos e otimistas, conseguiram fortalecer seu sistema imunológico.
Mas, apesar de todos esses resultados apontarem para uma relação entre as emoções e o sistema imunológico, a comunidade científica ainda não tinha conseguido testemunhar essa comunicação. Foi só em 2003 que surgiu a primeira evidência.
O pesquisador Richard Davidson, da Universidade de Wisconsin, observou a atividade cerebral de 52 pessoas enquanto elas escreviam sua experiência de vida mais feliz e a mais intensa tristeza que já haviam sentido.
Os voluntários que tinham apresentado maior atividade no lado direito do córtex pré-frontal enquanto descreviam o momento infeliz tiveram uma baixa resposta imunológica após tomarem uma vacina contra gripe. De modo inverso, aqueles que tiveram uma atividade excepcional enquanto se lembravam de momentos felizes apresentaram altos níveis de anticorpos.
O pesquisador não conseguiu explicar fisiologicamente de que modo a atitude positiva impulsionou a atividade do sistema imune, mas obteve uma pista: os indivíduos que tiveram maior atividade no lado esquerdo do córtex pré-frontal apresentaram também baixos níveis de cortisol, um dos principais hormônios liberados em situações de estresse e que inibem o sistema imunológico.
O mantra da fé
Apesar de as informações parecerem promissoras, os pesquisadores alertam para o risco de tais estudos levarem as pessoas que tendem ao pessimismo a crer que tudo está perdido.
No caso de pacientes com câncer, a psicóloga Margaret Kemeny, da Universidade da Califórnia, é enfática: "Não acredite em tudo o que você lê sobre atitudes positivas e sua relação com o câncer. É uma doença difícil e culpar-se por isso só vai piorar. Tente reconhecer e aceitar seus sentimentos e trabalhar com eles em um caminho construtivo".
O alerta também vale para os que se consideram felizes. É uma armadilha comum imaginar que ser otimista, rezar ou fazer meditação são os atalhos necessários para uma boa saúde, afirma o médico Régis Cavini Ferreira, que se especializou em psiconeuroendocrinoimunologia. "O que provavelmente acontece é que, com essas práticas, o indivíduo consegue equilibrar o seu sistema hormonal e deixar seu corpo no ponto certo para responder a futuras situações de estresse, reduzindo as conseqüências negativas." É preciso lembrar, porém, que as doenças têm outras causas que precisam ser levadas em conta.
Benson, do Mind and Body Medical Institute, acredita que o organismo de toda pessoa seja munido de propriedades de cura que podem ser despertadas pelo relaxamento. "Funcionamos como um banquinho de três pernas: medicamentos, cirurgia e resposta de relaxamento."
O psicólogo americano vai além e, contrariando a idéia de que ciência e religião não combinam, propõe também a oração para quem não se interessa por métodos alternativos. "Para conseguir uma resposta de relaxamento levamos em conta a força da repetição. E a reza é uma maneira de obter isso." Ou seja, a oração é também uma forma de relaxamento.
Independentemente da religião ou da falta dela, o que os cientistas têm percebido é que as crenças --vistas aqui com o sentido de acreditar que algo de bom vá acontecer--, têm um efeito muito significativo na melhora da saúde. É o que ficou conhecido como efeito placebo, situação em que o paciente toma um remédio inócuo ou faz uma cirurgia de mentira acreditando que está sendo tratado de verdade e apresenta melhora.
Do mesmo modo, acreditar demais em algo negativo pode ser fatal. O psicólogo da Unifesp José Roberto Leite lembra as histórias de haitianos que, de tanto acreditarem que tinham sido vítimas de uma ação de vodu, morreram de causas não explicadas.
"A fé como forma de pensamento tem um poder de mobilização enorme, tanto para o bem como para o mal", defende o psicólogo Esdras Guerreiro Vasconcellos, do Instituto Paulista de Estresse e Psiconeuroimunologia. "O antropólogo franco-belga Claude Lévi-Strauss já falava há 50 anos que uma pessoa condenada socialmente pela sua tribo morre, sem que seja preciso fazer nada. Ele dizia que o sistema imunológico não resiste à condenação moral. É disso que estamos falando."
Publicado em 27/01/05 - Folha de S. Paulo