Fóssil revela que homem já era bípede há 7 milhões de anos.
AP |
A pesquisa sugere também que Toumaï, como foi apelidado o Sahelanthropus tchadensis, é aparentemente mais "moderno" que hominídeos que surgiram depois dele.
"Isso significa que a árvore genealógica pode ser mais complexa do que suspeitávamos", disse à Folha o paleontólogo Daniel Lieberman, da Universidade Harvard (EUA). "É o bipedalismo que nos diferencia." Ele é co-autor do trabalho, publicado hoje no periódico científico britânico "Nature".
Lieberman se lembra bem de seu primeiro encontro com Toumaï. Foi em 2001, no laboratório de seu colega de Harvard David Pilbeam. "Eu tinha visto fotos do crânio, e pensava tratar-se de um chimpanzé."
Michel Brunet, o antropólogo da Universidade de Poitiers (França) que descobriu o Sahelanthropus no Chade, havia levado o fóssil para os EUA. "Entrei no laboratório e, sem dizer nada, os dois me estenderam o crânio. Vi que só podia ser um hominídeo e soltei um palavrão."
O espanto do americano foi compartilhado por outros pesquisadores, mas no sentido oposto: logo depois de sua descrição original, na mesma "Nature", em 2002, um grupo rival afirmou que o Sahelanthropus não era um hominídeo mas sim uma fêmea de gorila, ou um chimpanzé.
O peso da idade e dos sedimentos em que Toumaï estava sepultado distorceram o crânio. Brunet não teve como avançar no diagnóstico do fóssil com as técnicas tradicionais para rebater as críticas. Estava criada a polêmica.
Entravam em cena Marcia Ponce de León e Christoph Zollikofer, um casal de pesquisadores da Universidade de Zurique (Suíça) cuja especialidade é fazer reconstituições computadorizadas de fósseis humanos. Brunet encomendou aos dois uma "funilaria" virtual no controverso fóssil.
"Toumaï foi o trabalho mais difícil que já fizemos", conta Zollikofer. Primeiro, o fóssil era denso demais para ser submetido a uma tomografia computadorizada comum, dessas de hospital. Não havia tomógrafos industriais na França, então o crânio teve de viajar para a Suíça.
A tomografia produziu um crânio virtual, cheio de rachaduras. "Depois, nós o decompusemos em 70 pedaços. O duro aqui foi discernir sedimento de osso na tomografia", afirma Ponce.
Em seguida começou literalmente a montagem do quebra-cabeça. O casal de Zurique usou dois métodos distintos. Um deles buscava encaixar os pedaços de acordo com as fraturas. O outro se baseava em traços anatômicos, como a simetria entre os lados do crânio ou a orientação dos ouvidos internos. O crânio foi montado quatro vezes para que o casal tivesse certeza do seu formato.
A prova dos noves foi remontar Toumaï segundo os traços anatômicos de um chimpanzé e de um gorila. Sobre isso, a boliviana Ponce de León pontifica em alemão: "Der Teufel steckt im Detail!" (o diabo se esconde no detalhe). A remontagem produziu distorções, o que confirma que Toumaï não era um símio.
A principal revelação do "desamasso" em computador do Sahelanthropus foi que o plano nucal, onde a coluna se encaixa no crânio, é paralelo ao chão e perpendicular às órbitas, como em humanos modernos. Em chimpanzés e gorilas, ele é inclinado. Isso denuncia a orientação da coluna -e, por conseqüência, se o animal era bípede ou não.
Toumaï parece ser um bípede ainda mais desenvolvido que os australopitecos, que surgiriam só 3 milhões de anos depois e que não se locomoviam assim tão bem sobre duas pernas.
Outro traço aparentemente mais "avançado" no hominídeo de 7 milhões de anos é seu maxilar quase reto, mais perto do formato humano moderno -isso ainda requer explicação. Apesar de ressaltarem que é impossível ter certeza, os cientistas estão confiantes. "Não há como argumentar biologicamente que ele não poderia ter sido bípede", diz Marcia Ponce.