Um herói brasileiro no Olimpo.

Pouca gente soube, mas o comitê olímpico avisou aos atletas da maratona dos Jogos de Atenas que apenas os três primeiros colocados teriam o direito de permanecer no estádio para participar da festa de encerramento.

Muitos respiraram aliviados. Uma maratona são cerca de 46 mil passadas em pouco mais de duas horas, maltratando-se ossos, músculos e neurônios, e a única coisa que o atleta quer depois é um bom descanso.

O brasileiro Cordeiro nem pensou nisso. Pediu aos colegas que guardassem o seu lugar. Depois do pódio iria juntar-se aos bons. Já era um deles.

Consciente, disciplinado, determinado e destemido, Cordeiro treinou muito, sacrificou muito, renunciou muito, apostou muito para cumprir o seu objetivo. Sabia que somente a vontade divina lhe tiraria a medalha, qualquer medalha: ouro, prata ou bronze, tanto fazia.

Assim chegou, soberano, aos 30km, passada firme, vontade inexpugnável, aura de campeão. A boca seca, as dores de sempre, a queimação no pulmão. 'The wall' como dizem os experts.

Nem nosso atleta nem nossos mais criativos novelistas poderiam imaginar o que havia atrás da parede.

A simbólica, patética e multicolorida figura do padre terrorista de saias o abraça em meio à corrida, levando-o como pluma para o meio da multidão. Em reação imediata, anônimos e obesos cidadãos atenienses lutam em defesa do herói. Vimos isso e achamos engraçado no último filme do Homem-Aranha. Nada de engraçado em Atenas. Pura e encantadora magia da realidade.

Cordeiro pensou em facas, bombas, morte, vida e quando deu por si estava correndo outra vez. Adrenalina no sangue, castigando o que já estava em delicado equilíbrio fisiológico, teve de conversar de novo com cada uma das suas células, transmitindo-lhes a sua confiança, o seu firme propósito, a sua inabalável e serena determinação.

Cordeiro não percebeu, mas de forma mitológica, acompanhado ao telão pelos mortais que lotavam as arquibancadas do estádio, ele já corria no Olimpo, guindado a outra dimensão pelas divindades locais.

Magia. Mitologia. Já não importavam os outros atletas, para ele não havia mais competição. Passou um, passou outro, e entra Cordeiro no estádio, aplaudido não, ovacionado pelos mortais ali presentes. O Olimpo era ali e o Aquiles, Vanderlei.

Aqui, no Brasil de outros heróis, Vanderlei abriu um sorriso e disse: 'Estou muito feliz' na telinha de cada TV, janelas abertas para o distante Olimpo pela tecnologia global.

Recebemos então, aqui na terrinha, as lições singelas do nosso Cordeiro. Não há como lembrar as exatas palavras, mas o que ficou marcado em nossos corações e mentes:

O repórter perguntava, insolente, se havia mágoa, se havia rancor, se havia algo contra o colorido fanático. Vanderlei fingiu não se importar com a insolência e esclareceu:

'Consegui chegar, e sou bronze. Estou muito feliz.'

O repórter, digno representante dos mortais, insistia, e o Vanderlei condescendente:

'O que passou, passou. Não sou de me lamentar, não perco meu tempo com isso. Estou aqui, conquistei o meu objetivo, talvez ganhasse o ouro, talvez a prata, mas não me importa, tenho o meu bronze, estou aqui, era tudo o que eu queria. Se eu pudesse, daria o meu buquê de flores para ele.'

Cordeiro falava com pureza de alma, palavras sinceras, coisa dos deuses. Magia.

À insistência derradeira do repórter, que parecia, como nós, não acreditar que ainda houvesse no mundo tanto desprendimento, tanta grandeza, Vanderlei virou-se para um dos organizadores, solicitou humildemente: 'Posso dar uma voltinha?'

Era seu território, o pedido foi só uma delicada formalidade. Ele então deu a volta olímpica mais bonita que já vimos, desenhando mil corações no ar com braços finos, como criança. Abria estes braços, que viraram asas, sobrevoando os retardatários que ainda chegavam. Pura magia. Mitologia.

Ficou claro para nós. Ali havia uma fonte de felicidade. O desprendimento, o desapego, o 'não rancor'. Vivendo a sua vitória pessoal, o seu momento presente, Vanderlei nos fez pensar o nosso passado, o nosso presente e o nosso futuro.

O Brasil, pela primeira vez na história, teria ganho mais do que quatro medalhas de ouro. Na última prova da Olimpíada de Atenas, seria demais, imaginem, no trajeto da maratona original, aquela que o guerreiro fez para anunciar a vitória em Maratona.

Pois bem, Cordeiro fez mais que medalhar, também anunciou. Foi tão herói quanto o guerreiro original... Sua medalha, banhada nas cores dos valores nobres da virtude humana, já não é mais cobre, prata ou ouro, é multicor, é da cor das coisas boas do ser humano.

As Olimpíadas, repletas de números em ouro, prata e bronze, os interesses econômicos internacionais, a guerra, o terrorismo, o fanatismo e as tradicionais hipocrisias turbinadas pela mídia colocaram, sem perceber, um homem de bem no alto do Olimpo.

Que coisa boa, num tempo em que só se exalta o consumismo, o ter, a forma, a quantidade, a esperteza, a força bruta, poder ver, por vias tortas, um homem feio-bonito, pobre-rico, de bom caráter, de integridade, de medalha de bronze, desapegado, desconsumista, desconstruindo a maldade, a ganância, a hipocrisia, com seu sorriso de criança, com seus corações imaginários desenhados no ar, com suas asas de anjo voando sob os aplausos dos homens e mulheres de Atenas.